Havia
uma única alma vagando pela Estrada Velha naquela tarde. O céu estava bem azul,
mas o sol brilhava fraco, num tempo agradável de outono. O mato já ameaçava
voltar a crescer na estrada pouco movimentada, mas o solo duro e batido ainda
oferecia alguma resistência. Havia poucos pássaros e as árvores tinham copas
altas e longos troncos nus. Balazanar
caminhava, atento ao chão onde pisava e também à paisagem, de um lado floresta,
de outro montanha.
De longe parecia uma criança.
Pouco mais de um metro, porte despreocupado. Mas de perto a barba – e só a
barba! – traía a impressão. Balazanar tinha o rosto redondo, cabelos cacheados
desgrenhados, castanhos como os olhos curiosos, e uma barbicha jovem
descuidada. A barriga proeminente vez ou outra ameaçava arrebentar um botão do
colete de couro. A calça era preta e havia nela pendurado toda uma profusão de
pequenos bolsos, lares dos mais diversos objetos. Debaixo do colete havia uma
camisa grossa e cinzenta, com um ar caseiro e quente. Andava descalço, os pés
grandes e peludos, com a sola engrossada pelas estradas acidentadas. Usava um
chapéu de abas largas que parecia ser grande demais pra ele. Na cintura, uma
espada curta, com um curioso casco de tartaruga logo acima do punho, Nas
costas, um alaúde. Era todo uma mistura de coisa rústica com detalhe, compondo
um cenário cômico. Era um halfling da orla da Lagoa do Meio e não se viam
muitos como ele por aqueles lados. Vinha sacolejando, montado em um pônei
desatento e cansado.
- Mas que beleza de lugar! Porque
é que fica tão vazio? Não há nem sombra de gente por aqui! Ora, Peludo, estrada
boa é estrada cheia! Viagem boa é viagem acompanhada! Com conversa e cachimbo!
Por falar nisso vou fumar um pouco do tabaco do Boldo Botarroliça, meu velho!
E seguia assim, em monólogos
servilmente aturados pela montaria.
A razão pela qual a Estrada
Velha ficava tão deserta era a profusão de bandoleiros e monstros. O monte
Hurak brotava solitário e repentino naquele canto de Saerarg e sua enorme
quantidade de buracos e cavernas acabaram sendo abrigos ideais pra animais
selvagens e todo tipo de gente vil. O mesmo tipo de gente que havia indicado
aquele caminho a Balazanar. Em todo caso, era o caminho mais rápido, e o
pequeno estava com pressa.
Balazanar revirava uma bolsa pendurada
em Peludo, procurando o cachimbo, quando o pônei empacou.
- Êia, por que parou, seu coisa!
– resmungou o jovem. Só então levantou a cabeça e viu três homens fechando-lhe
o caminho. Feições nada amigáveis. Mas rostos conhecidos.
- Mas que droga, sabia que tinha
alguma coisa! Não se deve confiar em alguém que perde tão fácil num jogo de
cartas! A propósito – girou a mão e fez surgir uma carta de baralho – isso deve
ser seu! Ou não! – gargalhou e apeou de Peludo.
- Essa sua espada vale dinheiro,
baixinho. E esse alaúde também. Entregue eles junto com seu ouro e você segue
viagem – falou o que parecia ser o líder. Todos eram homens altos e fortes, mas
o que falava parecia ser o menos estúpido.
- Ora, senhores! Eu bem sei que
crianças não lutam! E não há mão de guerreiro que se encaixe nessa empunhadura!
E meu alaúde, veja bem senhores, foi presente de meu pobre pai!
- Não importa, baixinho, não
enxe o saco e passa logo essas coisas!
Os
outros dois homens avançaram, facas em punho e a morte nos olhos. Balazanar
recuou alguns passos, trazendo o alaúde pra frente e preparando-se pra tocar,
- Há algum problema que eu deva
saber? – perguntou uma voz potente e imperiosa, vindo de trás, pelo caminho
onde Balazanar viera. Todos pararam, em parte desconcertados pela presença, em
parte impelidos pela voz altiva.
Súbito um homem despontou da
curva da estrada. Montava um cavalo marrom e seu porte era tão grandioso quanto
à voz que o antecedera. Não vestia armadura, apenas uma blusa manchada cor de
palha, com uma capa marrom e um capuz esvoaçando em suas costas. Na cintura,
uma espada pesada e bem cuidada. O rosto tinha traços severos, a barba por
fazer e o cabelo descuidado até os ombros conferindo uma fúria selvagem à
aparência do homem. Os olhos eram escuros e penetrantes e transpareciam a
autoridade adquirida com os fios grisalhos no cabelo preto. Uma cicatriz no
lado esquerdo do rosto, logo abaixo da bochecha e até o início do pescoço
delatava uma vida enfrentando a morte.
- Não, não há! – falou o
bandido.
- É apenas uma conversa entre
amigos de carteado! – riu-se Balazanar – Divirta-se conosco!
E começou a tocar de leve as
cordas do alaúde.
- Não se intrometa em assuntos
dos outros! – berrou um dos homens armados, que até então estivera silencioso.
- Espera aí! Você estava na
taverna, não é mesmo? Lembro de ter visto a cicatriz sob o capuz! Que bom
momento para encontrá-lo! Vem, vamos dançar um pouco! – disse o pequeno e
começou a tocar com mais ânimo.
Anton desceu do cavalo com
agilidade e sacou a espada. Correu com passos rígidos de soldado na direção dos
bandidos, duas mãos no cabo da espada.
Os dois bandidos, até então
parados, investiram contra o halfling. A primeira facada veio descendo e o jovem
a evitou com um salto ágil para o lado. Veio junto uma estocada, agora evitada
com dois pulinhos afetados para trás. Bem ao lado de Balazanar sibilou algo e
ele pôde ver seu benfeitor evitando uma flecha. Num movimento rápido o pequeno
sacou sua espada e se encolheu, protegendo-se e esperando pelos próximos movimentos
dos inimigos. Uma nova estocada veio e bateu no casco de tartaruga,
desviando-se do peito do jovem. O outro bandido ignorou Balazanar e investiu
contra o homem do cavalo.
Mau ele deu dois passos e a
lâmina de Anton o encontrou, descendo impiedosa sobre seu ombro, rompendo carne
e osso no caminho. Urrou de dor e se fez ouvir por todo o sopé do monte.
Uma nova flecha foi disparada,
dessa vez chocando-se contra a espada de Anton. O Cavaleiro investiu contra o
arqueiro. Uma nova flecha foi armada, mas não ouve tempo: um corte baixo, pouco
acima da cintura e o homem caiu inerte, reduzido a gemidos. Anton se virou a
tempo de ver o último inimigo fugindo, sem resistência de Balazanar, disparando
pro meio da floresta.
- Você está bem? – perguntou
Anton.
- Sim sim! E não é que ainda
existem heróis por esses lados! Eu temia tanto que isso não fosse verdade!
Minha viagem não teria tanta graça, amigo! A propósito, qual o seu nome? Sou
Balazanar Rosarubi, filho do velho Teo, de Bonestruca! Certamente já ouviu
falar de Romeu, meu tio de Anarde! Viajemos juntos, quero ouvir histórias suas!
Tenho aqui um excelente tabaco que comprei do Boldo Botarroliça e – e revirava
novamente a bolsa em busca do cachimbo perdido.
- Que bom que está bem. –
interrompeu Anton – Quer dizer que cheguei a tempo. Ouvi você perguntando sobre
o caminho e vi que a resposta escondia alguma intenção.
- Ora, mas muito obrigado, bom
homem! Achei o cachimbo! Vem, veja isso! É uma maravi –
- Eu não fumo. Viajarei a seu
lado até contornarmos o monte e sairmos dessa região erma. Depois eu sigo meu
caminho.
- E pra onde está indo, homem?
- Procuro uma pessoa. Venha. Mas
vamos em silêncio. Você pode tocar um pouco, se quiser.
Balazanar olhou o companheiro,
curioso. Por fim, se contentou:
- Está certo!
Montaram e seguiram.
No final do dia já estavam além
do monte. O Cavaleiro meneou a cabeça em despedida e cavalgou rápido, sumindo
na estrada à frente. Balazanar resmungou, Peludo ouviu e assim seguiram mansos,
até toparem com uma estalagem.
Ж
Todos, com exceção de Anton, gargalharam da história.
- Então quer dizer que você já salvou a vida de
Anton, Bala? Quem diria que isso seria
possível! – disse o Conde, entre risos e tosse.
- Pois então, meu velho! Ele me salvou de uns
rufiõezinhos de nada e não é que dias depois o destino me fez devolver o favor?
Se eu não espanto aqueles lobos Anton nem estaria mais aqui! – bravateou
Balazanar.
- Você disse que os espantou com feitiços... achei
que era um menestrel, pequeno amigo, e não um bruxo! – falou Alarian.
- Ora, padre, de onde eu venho expulsar lobos é
tarefa de criança!
E a ladainha continuou. Quando o halfling se
empolgava com algo não havia nada que o fizesse parar. Não que o barulho
incomodasse Anton, absorto em seus silêncios interiores. E ademais era verdade:
o pequeno o salvara. Ele havia resolvido dormir sem fogueira pra não atrair
atenções e acabou sendo pego desprevenido pelos lobos. Mas, ainda assim,
preferia viajar sozinho.
- E depois disso ele deixou você seguir com ele? – o
Conde.
- Claro, claro! Não se nega o nome a quem se deve a
vida, não é mesmo Anton? – brincou Balazanar, com uma piscadela.
- Não grite tanto ou irá avisar a todos que estamos
aqui, Balazanar! – ralhou Anton.
- Êia homem arredio! Ainda arranco um sorriso dele! –
brincou Bala e continuou gargalhando com os outros dois.
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