quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A Minha Liga Extraordinária - parte 2

Havia uma única alma vagando pela Estrada Velha naquela tarde. O céu estava bem azul, mas o sol brilhava fraco, num tempo agradável de outono. O mato já ameaçava voltar a crescer na estrada pouco movimentada, mas o solo duro e batido ainda oferecia alguma resistência. Havia poucos pássaros e as árvores tinham copas altas e longos troncos nus.  Balazanar caminhava, atento ao chão onde pisava e também à paisagem, de um lado floresta, de outro montanha.
                De longe parecia uma criança. Pouco mais de um metro, porte despreocupado. Mas de perto a barba – e só a barba! – traía a impressão. Balazanar tinha o rosto redondo, cabelos cacheados desgrenhados, castanhos como os olhos curiosos, e uma barbicha jovem descuidada. A barriga proeminente vez ou outra ameaçava arrebentar um botão do colete de couro. A calça era preta e havia nela pendurado toda uma profusão de pequenos bolsos, lares dos mais diversos objetos. Debaixo do colete havia uma camisa grossa e cinzenta, com um ar caseiro e quente. Andava descalço, os pés grandes e peludos, com a sola engrossada pelas estradas acidentadas. Usava um chapéu de abas largas que parecia ser grande demais pra ele. Na cintura, uma espada curta, com um curioso casco de tartaruga logo acima do punho, Nas costas, um alaúde. Era todo uma mistura de coisa rústica com detalhe, compondo um cenário cômico. Era um halfling da orla da Lagoa do Meio e não se viam muitos como ele por aqueles lados. Vinha sacolejando, montado em um pônei desatento e cansado.
                - Mas que beleza de lugar! Porque é que fica tão vazio? Não há nem sombra de gente por aqui! Ora, Peludo, estrada boa é estrada cheia! Viagem boa é viagem acompanhada! Com conversa e cachimbo! Por falar nisso vou fumar um pouco do tabaco do Boldo Botarroliça, meu velho!
                E seguia assim, em monólogos servilmente aturados pela montaria.
                A razão pela qual a Estrada Velha ficava tão deserta era a profusão de bandoleiros e monstros. O monte Hurak brotava solitário e repentino naquele canto de Saerarg e sua enorme quantidade de buracos e cavernas acabaram sendo abrigos ideais pra animais selvagens e todo tipo de gente vil. O mesmo tipo de gente que havia indicado aquele caminho a Balazanar. Em todo caso, era o caminho mais rápido, e o pequeno estava com pressa.
                Balazanar revirava uma bolsa pendurada em Peludo, procurando o cachimbo, quando o pônei empacou.
                - Êia, por que parou, seu coisa! – resmungou o jovem. Só então levantou a cabeça e viu três homens fechando-lhe o caminho. Feições nada amigáveis. Mas rostos conhecidos.
                - Mas que droga, sabia que tinha alguma coisa! Não se deve confiar em alguém que perde tão fácil num jogo de cartas! A propósito – girou a mão e fez surgir uma carta de baralho – isso deve ser seu! Ou não! – gargalhou e apeou de Peludo.
                - Essa sua espada vale dinheiro, baixinho. E esse alaúde também. Entregue eles junto com seu ouro e você segue viagem – falou o que parecia ser o líder. Todos eram homens altos e fortes, mas o que falava parecia ser o menos estúpido.
                - Ora, senhores! Eu bem sei que crianças não lutam! E não há mão de guerreiro que se encaixe nessa empunhadura! E meu alaúde, veja bem senhores, foi presente de meu pobre pai!
                - Não importa, baixinho, não enxe o saco e passa logo essas coisas!
Os outros dois homens avançaram, facas em punho e a morte nos olhos. Balazanar recuou alguns passos, trazendo o alaúde pra frente e preparando-se pra tocar,
                - Há algum problema que eu deva saber? – perguntou uma voz potente e imperiosa, vindo de trás, pelo caminho onde Balazanar viera. Todos pararam, em parte desconcertados pela presença, em parte impelidos pela voz altiva.
                Súbito um homem despontou da curva da estrada. Montava um cavalo marrom e seu porte era tão grandioso quanto à voz que o antecedera. Não vestia armadura, apenas uma blusa manchada cor de palha, com uma capa marrom e um capuz esvoaçando em suas costas. Na cintura, uma espada pesada e bem cuidada. O rosto tinha traços severos, a barba por fazer e o cabelo descuidado até os ombros conferindo uma fúria selvagem à aparência do homem. Os olhos eram escuros e penetrantes e transpareciam a autoridade adquirida com os fios grisalhos no cabelo preto. Uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, logo abaixo da bochecha e até o início do pescoço delatava uma vida enfrentando a morte.
                - Não, não há! – falou o bandido.
                - É apenas uma conversa entre amigos de carteado! – riu-se Balazanar – Divirta-se conosco!
                E começou a tocar de leve as cordas do alaúde.
                - Não se intrometa em assuntos dos outros! – berrou um dos homens armados, que até então estivera silencioso.
                - Espera aí! Você estava na taverna, não é mesmo? Lembro de ter visto a cicatriz sob o capuz! Que bom momento para encontrá-lo! Vem, vamos dançar um pouco! – disse o pequeno e começou a tocar com mais ânimo.
                Anton desceu do cavalo com agilidade e sacou a espada. Correu com passos rígidos de soldado na direção dos bandidos, duas mãos no cabo da espada.
                Os dois bandidos, até então parados, investiram contra o halfling. A primeira facada veio descendo e o jovem a evitou com um salto ágil para o lado. Veio junto uma estocada, agora evitada com dois pulinhos afetados para trás. Bem ao lado de Balazanar sibilou algo e ele pôde ver seu benfeitor evitando uma flecha. Num movimento rápido o pequeno sacou sua espada e se encolheu, protegendo-se e esperando pelos próximos movimentos dos inimigos. Uma nova estocada veio e bateu no casco de tartaruga, desviando-se do peito do jovem. O outro bandido ignorou Balazanar e investiu contra o homem do cavalo.
                Mau ele deu dois passos e a lâmina de Anton o encontrou, descendo impiedosa sobre seu ombro, rompendo carne e osso no caminho. Urrou de dor e se fez ouvir por todo o sopé do monte.
                Uma nova flecha foi disparada, dessa vez chocando-se contra a espada de Anton. O Cavaleiro investiu contra o arqueiro. Uma nova flecha foi armada, mas não ouve tempo: um corte baixo, pouco acima da cintura e o homem caiu inerte, reduzido a gemidos. Anton se virou a tempo de ver o último inimigo fugindo, sem resistência de Balazanar, disparando pro meio da floresta.
                - Você está bem? – perguntou Anton.
                - Sim sim! E não é que ainda existem heróis por esses lados! Eu temia tanto que isso não fosse verdade! Minha viagem não teria tanta graça, amigo! A propósito, qual o seu nome? Sou Balazanar Rosarubi, filho do velho Teo, de Bonestruca! Certamente já ouviu falar de Romeu, meu tio de Anarde! Viajemos juntos, quero ouvir histórias suas! Tenho aqui um excelente tabaco que comprei do Boldo Botarroliça e – e revirava novamente a bolsa em busca do cachimbo perdido.
                - Que bom que está bem. – interrompeu Anton – Quer dizer que cheguei a tempo. Ouvi você perguntando sobre o caminho e vi que a resposta escondia alguma intenção.
                - Ora, mas muito obrigado, bom homem! Achei o cachimbo! Vem, veja isso! É uma maravi –
                - Eu não fumo. Viajarei a seu lado até contornarmos o monte e sairmos dessa região erma. Depois eu sigo meu caminho.
                - E pra onde está indo, homem?
                - Procuro uma pessoa. Venha. Mas vamos em silêncio. Você pode tocar um pouco, se quiser.
                Balazanar olhou o companheiro, curioso. Por fim, se contentou:
                - Está certo!
                Montaram e seguiram.
                No final do dia já estavam além do monte. O Cavaleiro meneou a cabeça em despedida e cavalgou rápido, sumindo na estrada à frente. Balazanar resmungou, Peludo ouviu e assim seguiram mansos, até toparem com uma estalagem.

Ж

                Todos, com exceção de Anton, gargalharam da história.
                - Então quer dizer que você já salvou a vida de Anton, Bala?  Quem diria que isso seria possível! – disse o Conde, entre risos e tosse.
                - Pois então, meu velho! Ele me salvou de uns rufiõezinhos de nada e não é que dias depois o destino me fez devolver o favor? Se eu não espanto aqueles lobos Anton nem estaria mais aqui! – bravateou Balazanar.
                - Você disse que os espantou com feitiços... achei que era um menestrel, pequeno amigo, e não um bruxo! – falou Alarian.
                - Ora, padre, de onde eu venho expulsar lobos é tarefa de criança!
                E a ladainha continuou. Quando o halfling se empolgava com algo não havia nada que o fizesse parar. Não que o barulho incomodasse Anton, absorto em seus silêncios interiores. E ademais era verdade: o pequeno o salvara. Ele havia resolvido dormir sem fogueira pra não atrair atenções e acabou sendo pego desprevenido pelos lobos. Mas, ainda assim, preferia viajar sozinho.
                - E depois disso ele deixou você seguir com ele? – o Conde.
                - Claro, claro! Não se nega o nome a quem se deve a vida, não é mesmo Anton? – brincou Balazanar, com uma piscadela.
                - Não grite tanto ou irá avisar a todos que estamos aqui, Balazanar! – ralhou Anton.

                - Êia homem arredio! Ainda arranco um sorriso dele! – brincou Bala e continuou gargalhando com os outros dois.

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