Já comentei com você em mais de uma ocasião a minha vontade de escrever algo envolvendo algumas criações minhas: Balazanar ("senhores!"), Conde de Norfolk (repeat) e Alarian (aaahhhh). Junto deles tem Anton, um outro personagem, que nasceu antes de todos eles mas que nunca chegou a sair do papel.
Pois bem, de fato comecei a escrever um romance sobre esses quatro nas minhas primeiras semanas aqui em Houston, assim que cheguei aqui no ano passado. Tive que parar pra poder me dedicar a outras coisas. Esbarrei com isso hoje no meu computador e decidi compartilhar com vocês. Tenho umas 7 páginas de texto prontas e aí seguem as 2 primeiras... Talvez em um momento futuro eu poste mais!
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Havia gritos. Clemência,
piedade, desespero, medo, dor. E palavras de comando, risos, brados de luta,
armas se chocando.
Havia calor. Piras imensas, armaduras pesadas, suor, batalha.
Havia fedor. De animais fugindo, de gente viva, de gente queimada, de um jantar interrompido, de sono.
Havia sabor. De boca seca, gosto de nada, gosto de tudo. O dissabor da perda. O intragável sabor de matar pela primeira vez. O toque amargo de ter a certeza da derrota. O sal das lágrimas.
Havia calor. Piras imensas, armaduras pesadas, suor, batalha.
Havia fedor. De animais fugindo, de gente viva, de gente queimada, de um jantar interrompido, de sono.
Havia sabor. De boca seca, gosto de nada, gosto de tudo. O dissabor da perda. O intragável sabor de matar pela primeira vez. O toque amargo de ter a certeza da derrota. O sal das lágrimas.
E havia caos.
Chamas imensas serpenteavam tentando alcançar as
poucas estrelas no céu. Os casebres eram devorados com uma voracidade cruel
pelo fogo. Crianças choravam aos berros, protegidas por suas mães desesperadas
e sem esperança. Os homens lutavam improvisados, enxadas e forcados contra
espadas e escudos.
Um jovem tomou uma estocada, as vísceras não
oferecendo resistência à ponta afiada da espada. Um velho teve a mão decepada
por um corte limpo e preciso. Um camponês arranhou a armadura de um Cavaleiro
com uma machadinha, e então caiu por um corte fundo no peito. Uma barbárie, já
que violência sem oposição à altura é massacre. Informações seguras indicavam
que um velho inimigo da Ordem, sacerdote poderoso e profano, tomara a vila como
morada e corrompera seus moradores. Os Cavaleiros, então, atacaram o lugar, em
busca do vilão há dez anos desaparecido. Eram dez homens, contra pouco mais de
cem. Os invasores cobravam, obrigavam, exigiam a presença do sacerdote. Mas os
moradores do vilarejo estavam surdos de medo. E a cada palavra não ouvida uma
vida se perdia.
Inocentes morriam a cada minuto. Inocentes matavam, a
cada minuto. Os Cavaleiros do Templo Errante, acostumados que eram a combater o
Mal e a tirania, executavam com maestria o maior erro de sua nobre história.
Criminosos e culpados de algo imperdoável, mas entre eles havia também vítimas.
Anton viu um casarão, ainda sem fogo. Arrombou a
porta em um chute e entrou, desbravando a escuridão. Súbito, algo se quebrou na
sua cabeça. Ficou zonzo por um instante e sentiu unhas no seu pescoço. Quem o atacava gritava de fúria incontida e
agora golpeava o rosto do Cavaleiro. E Anton viu que era uma mulher. Uma mãe
protegendo o filho, que chorava no fundo do vasto cômodo.
- Não tem nada aqui pra vocês, não entendem? Levem o
que quiserem, mas não nos matem! – gritava a mulher, enquanto ainda agredia o
invasor.
- Viemos purificá-los, senhora! Entregue-nos o
sacerdote e partimos! – bradou Anton, esquivando-se e defendendo-se com o
escudo.
- Loucos! Assassinos! Não há sacerdote algum aqui!
E a mulher caiu, um golpe de escudo acertando em
cheio seu queixo. A criança não mais chorava, mas soluçava, paralisada de medo.
- Não tem sacerdote nenhum, homem! Por favor não mate
meu filho! – balbuciava a mulher, agora as lágrimas e o sangue jorrando. – Leve
o que quiser, mas não mate meu filho! – e se agarrava às pernas do Cavaleiro.
Anton olhou a criança e lembrou do próprio filho. Os
dois deviam ter a mesma idade, mas certamente não a mesma vida.
- Entregue-nos o sacerdote, senhora, e então –
- Não há merda nenhuma de sacerdote! – a mulher agora
esmurrava as pernas do Cavaleiro, golpes fracos, mas carregados de dor.
- Há sim alguém profanando essas terras –
- Não, não tem! Por favor, não nos mate – agora
implorava, deitada aos pés do homem, sem forças.
- Seu filho não pagará pelas suas mentiras! – bradou
Anton. Afastou a mulher com os pés e saiu da casa.
Olhou à sua volta. A maior parte dos homens da vila
já não lutavam, mortos ou incapacitados. E os Cavaleiros prosseguiam
incansáveis, ainda sem perdas. Havia poucos casebres ainda de pé. E ainda assim
não encontravam o que foram ali buscar.
Porque não existia.
Os olhos de Anton se encheram de lágrimas, de
percepção, de raiva e de vergonha, o sal de toda uma vida ameaçando jorrar.
Olhou a noite iluminada pelas piras cruéis, vermelha de fogo e sangue. Olhou o
casarão e viu um Cavaleiro entrando. Sequer pensou. Correu.
Entrou pela casa em tempo de derrubar Andrev e evitar
o golpe que arruinaria mãe e filho, agora unidos em um abraço.
- Eles estão certos, Andrev, não há nada aqui! Fomos
enganados! Nossa missão era uma mentira! – disse Anton, erguendo-se do chão.
- Não caia nessa ladainha, Anton! – furioso – Juramos
lealdade a nosso senhor e irei varrer o mal desta vila!
- Não entende? Não há mal nenhum aqui! – Anton, se
interpondo entre Andrev e a mulher, o pescoço pulsando, as mãos fortes no cabo
da espada.
- Saia da frente, Anton! Deixe que eu descubra o que
viemos buscar! – e Andrev fez menção de avançar.
- Não permitirei que os toque! Junte os homens e
vamos partir daqui! Vamos ajudar na reconstrução das casas, Andrev, não há nada
aqui! – disse Anton, algumas lágrimas de culpa escorrendo.
- Traidor miserável! Não o mato agora por respeito a
você!
- Não! Não mata porque não consegue.
Olhos crispados, mãos nos punhos das espadas. Tensão
sólida.
Súbito, mais dois Cavaleiros entraram na sala. Andrev
baixou a arma e esboçou um meio sorriso.
- A sua missão era uma mentira, Anton. Você
foi enganado!
Ж
A fogueira agora ardia viva. Era uma noite agradável e estrelada, a lua brilhando cheia de vida no céu. Alarian colocava os últimos gravetos na chama que os manteria aquecidos pela noite. O jovem sacerdote era uma figura estranha. Era enorme, quase dois metros de altura, corpo forte e saudável. Usava sandálias surradas e simples e um manto bege encardido, grosseiro, sem detalhes. Tinha pouco cabelo, fiapos espaçados na cabeçorra. Duas presas saltando de baixo da boca, contraindo os lábios. A pele era de um tom verde profundo, rugosa, grossa, rígida, e as mãos eram colossais, e duras feito parede. Os olhos eram azuis, puros e incorruptíveis. E a voz era suave e relaxante.
- Acho que
deve bastar, meus amigos! Manterá-nos aquecidos e afastará os bichos! – falou
Alarian, com um sorriso gentil.
- Pois bem,
Alarian, agora tome seu lugar que o jovenzinho ali nos deve uma história! – riu
o Conde, sua voz grossa e rouca.
- Cinco
minutos, senhores, cinco minutos é tudo de que preciso! – respondeu Balazanar,
sem tirar os olhos de uma flauta que havia comprado há alguns dias e que
tentava tocar.
E enquanto
isso, sob o soar ainda desafinado do instrumento, Anton contemplava as chamas.
E seu peito
ardia.
1 comentários:
MT, temos que escrever um livro juntos ainda.
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