Bom, com isso termina o que eu tinha escrito...
Alarian
caminhava e caminhava, e seus pés não se cansavam.
Já havia andado muito pelos
campos ermos de Eradna até encontrar um barco e cruzar o Mar do Oeste. Difícil
achar comerciantes por aqueles lados, vazios de civilização. Mas encontrou um
velho coureiro, que viajara com o filho em busca de peles mais exóticas, e
tomou condução. Foi difícil convencer os dois a levá-lo, homem bruto, híbrido,
aparência selvagem. Mas os modos gentis – e o ouro – conseguiram amaciar seus ânimos.
A pequena embarcação fedia a
coisa morta. As peles frescas seguiam sem muito cuidado. Alarian contemplava o que
um dia fora um cervo e maldisse sua sorte. Fechou os olhos e fez uma prece
silenciosa. Ironia estar inevitavelmente cercado de morte, inalando-a sem
escolha. Logo ele, pregador da Paz e da Vida, as mais sagradas das coisas.
Desembarcou num portozinho no
reino de Hienlore e seguiu rumando a norte, em direção à capital Fianlall.
Deixara pai e amigos para trás para varrer o mundo espalhando sua sabedoria,
curando doentes e evitando a morte e a profanação. Deixara para trás a
desconfiança e a indiferença de quase todos à sua volta.
A mãe de Alarian era Naria,
humana de grande beleza e esposa de Faris, Alto Sacerdote do Templo de
Fianlall. Lorde Faris fora enviado a Talaria, raro ponto de civilização na
terra dos bárbaros, para conter a mortandade de homens no lugarejo, fruto da
inacabável guerra com os monstros que reivindicavam aqueles campos.
Faris em missão. Cidade
desguarnecida. Orcs. Naria.
A mulher em prantos. Sangue.
Horror. Dor. Vergonha.
Uma mácula se abateu sobre ela
após o ataque. Ferida incontornável. A barriga inchava cada dia mais, uma
monstruosidade, metade dela, nutrindo-se de seu corpo.
Faris, sacerdote da Vida, a
cabeça a mil. Teve alguns meses para escolher. E escolheu sua fé: aceitaria a
criança como seu filho. E então nasceu Alarian, já trazendo ao mundo a morte: a
da mãe. E herdando para si aqueles reluzentes olhos azuis.
As pessoas respeitavam Alarian
por sua estirpe e admiravam o Lorde pelo altruísmo. Mas poucos nutriam carinho
sincero. Por isso Alarian partira, buscando um lugar no mundo em que não o
julgassem tão prontamente. Além disso, precisava se apresentar ao Templo e adquirir
a benção de seus superiores. Já era um sacerdote de conhecimento respeitável,
mas tudo o que sabia fora aprendido do pai. Desejava agora se tornar conhecido
do ordenado e engrossar as fileiras dos missionários.
O sacerdote viajava seguindo as
estradas tortuosas, desviando de montanhas e florestas, incomodado pelo grande
número de viajantes, a maioria comerciantes, em fluxo contínuo. Certo dia foi
dar em um lugarejo pequeno e simples, mas que inspirava riquezas passadas e,
sobretudo, paz. Estranhamente a cidade era repleta de armeiros e o som das
bigornas podia ser ouvido de longe. A cidade se espalhava plana e aglomerada,
ao redor de um palácio antigo. Alarian ouviu dois comerciantes conversando e
descobriu o nome do lugar: Norfolk.
A estrada ladeava a cidade,
contornando-a, mas muitos paravam nas lojas mais à borda, numa venda e compra
incessante.
Alarian resolveu entrar na
cidade, impelido pelo cansaço e pela curiosidade. A maior parte das casas era
feita de madeira e palha, como em Talaria, mas havia algumas mais opulentas
erigidas com pedra e tijolos. O padre tentava entender a cidade, desacostumado
que estava à aglomeração de pessoas, e queria ver o palácio. Ouvira falar de
construções grandiosas, mas jamais havia visto uma.
Ele andava, a cidade um misto de
silêncio e comércio fervilhante. Quanto mais ele seguia para o centro do lugar,
menos viajantes havia e mais estranho ele era. Janelas se fechavam e caminhos
eram alterados para evitá-lo. Alarian engoliu a amargura, constatando que daquele
lado do Mar do Oeste as coisas começavam a seguir da mesma maneira que em sua
terra natal. Tentou ignorar os olhares oblíquos e foi andando para o Palácio.
Súbito, correria. Um homem sujo
e maltrapilho corria com um embrulho de pano na mão, na direção do meio-orc.
Gritos de “ladrão, ladrão!” ecoavam ao longe. As pessoas se afastavam,
assustadas. Três guardas vinham ao longe, tentando alcançar. O instinto fez com
que Alarian se pusesse em perseguição ao larápio, disposto a ajudar o
verdadeiro dono daquilo que parecia ser um presente.
Cada passo do padre era quase
dois do ladrão, que se desesperava ante a aproximação constante do perseguidor.
Cascos de cavalo batiam contra o chão e se aproximavam. De repente, Alarian
sentiu uma pancada brusca e poderosa nas costas e caiu pesado no chão, os
cascos do cavalo parando a seu lado. Ele se levantou com dificuldade e o
cavaleiro apeou ao seu lado. O mendigo sumia ao longe.
Figura estranha, o cavaleiro.
Armadura completa e espada bem trabalhada, ambas não conseguindo esconder
décadas de uso. Uma postura imponente de quem cavalga e luta a duros fardos por
toda uma vida, mas um pouco cansada de tanto batalhas. O rosto era repleto de
rugas e possuía um bigode fino e um cavanhaque que lhe davam um ar
aristocrático. Os olhos eram de um azul brilhante e contrastavam com a brancura
dos cabelos, impecavelmente penteados para trás.
- Muito bem, Tiberius! – bradou
o homem coma uma voz rouca, seca e imperiosa, sorrindo e batendo no lombo da
montaria de pelo marrom e crina aparada. – E você, criatura, devia se
envergonhar por ousar roubar à sombra do Palácio do Duque! – falou, apontando
para o rosto de Alarian enquanto este se levantava.
O meio-orc contiuava sem
entender o que se passava.
- Vamos, devolva o presente de
Sua Alteza!
- Mas não sou eu o ladrão! –
respondeu Alarian, inconformado.
- Não tente enganar o Conde de
Norfolk com palavras fáceis, moleque!
Nessa altura uma pequena
multidão havia se formado ao redor deles, assistindo em um silêncio tenso.
- Mas não sou eu o ladrão,
Conde! Eu estava em sua perseguição!
Os dois pares de olhos azuis se
confrontavam, quando:
- O ladrão fugiu, Conde. Esse
homem é inocente – sentenciou um guarda, que enfim chegara, esbaforido.
Ж
Alarian escolhera uma estalagem
barata pra ficar. Ele possuía pouco dinheiro, já que havia recusado o dinheiro
oferecido pelo pai e gasto boa parte de sua economia para cruzar o mar. O
desjejum era frugal como ele mesmo: água fresca e um bocado de pão. As
manzorras verdes o dilaceravam com facilidade e ele mastigava com facilidade
com seus dentes duros e colossais. A despeito de tudo a manhã amanhecera doce e
primaveril e os pássaros conseguiam impor sua melodia aos burburinhos humanos.
O sacerdote comia com os outros
hóspedes da estalagem em uma mesa comprida de madeira grossa e ancestral,
situada em um salão amplo, nos fundos da estalagem, suscetível aos deliciosos
odores matutinos da cozinha. Havia outros cinco hóspedes no recinto, que não
mais encaravam Alarian como uma aberração. O engano do Conde havia-o
transformado em uma figura conhecida. De fato, o Conde de Norfolk era mais que
uma figura folclórica; era um símbolo da cidade, para alguns até mesmo um herói.
Assim, qualquer erro de sua parte adquiriria ares mitológicos. Alarian,
portanto, estava a salvo de zombarias e desprezo. Se o Conde duvidara de sua
idoneidade e admitira estar errado, não haveria quem atentasse contra a boa
alma.
O dono do lugar – um velho
baixinho e atarracado, careca e imberbe – colocava mais pão na mesa, quando sua
atenção foi atraída para a velha porta, que rangeu dolorosamente ante a chegada
de um visitante. O velho se assustou e deixou a vasilha de pão cair. Era o
Conde.
- Muito bom dia meu Lorde! A que
devo a honra de visita tão ilustre e em tão boa hora? Aceitaria alguma coisa de
nossa cozinha? – se adiantou o homenzinho, atropelando palavras e gestos em tom
de surpresa.
- Bom dia, amigo! Não se
preocupe com hospitalidade, vim apenas visitar um velho conhecido! – disse o
Conde, com sua voz rouca e imperiosa.
- Mas certamente posso
providenciar para que sua estadia aqui seja a melhor possível!
- Dispenso seus cuidados,
camarada! Descansar! – bradou o Conde e sua risada alta tomou conta do salão. E
depois sua tosse.
- Muito me agrada vê-lo
novamente, senhor – falou Alarian, consciente de ser o motivo da visita.
- Principalmente não sendo sob
os cascos de Tiberius! – uma nova risada, correspondida pelo padre. – Devo lhe
informar, caríssimo sacerdote, que venho novamente implorar para que perdoe meu
mau julgamento – agora o tom sério.
- E devo lhe informar,
novamente, que lhe concedo meu perdão, campeão de Norfolk! – respondeu Alarian,
sereno – Por vezes até mesmo os mais sábios estão sujeitos a enganos!
- Enganos são toleráveis, mestre
Alarian, mas não quando atentam contra a honra de um homem bom! Permita que eu
lhe recompense!
- Não há dinheiro que pague por
um perdão já concedido.
- Sei disso, amigo, e não
ofereço dinheiro. Ofereço-lhe minha vida!
- Que hei eu de fazer com sua
vida, quando ela é tão mais necessária por essas terras? Vejo em seus olhos uma
nobreza rara, Conde, e por isso peço que releve enganos passados.
- Seguirei com você, mestre
Alarian, irei escoltá-lo para qualquer que seja seu destino!
Os demais ocupantes do salão
olhavam surpresos ao velho prestando honrarias ao estrangeiro.
- És homem de estirpe e de
terras, Conde. Como irá caminhar ao lado de criatura tão frugal e
desprovida
de posses como eu? – Alarian respondeu, levantando-se e indo de encontro ao
velho.
- Já conversei com o Duque e ele
foi favorável, mestre Alarian! Fui liberado de meus serviços para segui-lo, da
maneira como lhe for mais conveniente – explicou o Conde, olhando fundo nos
olhos do sacerdote.
- Pois então aceito de bom grado
sua companhia até Fianlall, nobre cavaleiro! – assentiu Alarian, com sorriso
quente como há muito não esboçava.
- Será uma honra servi-lo, meu
senhor!
Ж
Alarian não pagou pelo quarto da
estalagem; o dono recusou terminantemente o dinheiro de um amigo do Conde. Em
retribuição pela gentileza, Alarian abençoou o local e então tomou estrada.
Das chaminés do Palácio saía uma
fumaça amarela, sinal da partida de amigos da casa Merievan. O homenzarrão e o
Conde andavam lentos e em silêncio, seguidos por uma procissão de pessoas que temporariamente
se despediam do velho Conde. Alguns estavam festivos, como sempre se observa em
grandes porções de pessoas, mas o tom geral era de tristeza. Assim Alarian
sentiu o que tirava daquele lugar até que chegasse à capital. E decidiu que
seria breve.
Ж
Balazanar e Anton caminhavam juntos
há alguns dias, para o prazer de um e lamento do outro. Tomavam sempre os
caminhos mais escusos e andavam dobrado para poder evitar alguma trilha mais
conhecida. Sua viagem, contudo, não se atrasava, já que o Cavaleiro impunha um
ritmo alucinante, rigorosamente acatado e seguido sem reclamações por parte do
pequenino. Anton se admirou, até, e passou a respeitar um pouco mais o
halfling.
Há uma semana eles haviam partido do
extremo sul do reino de Hienlore e a essa altura já deviam estar cavalgando na
metade norte. Seguiam por uma trilha antiga, abraçada de todos os lados por uma
floresta úmida de árvores não muito altas, mas com galhos finos e retorcidos
despontando ao redor. Um cheiro de podridão pairava palpável no ar estagnado e
as montarias estavam incomodadas. Peludo e o cavalo de Anton eram puxados pelas
rédeas e a todo momento eram arranhados por um galho mais longo; não havia
altura para cavaleiro e montaria por aqueles lados. A cada passo o chão ficava
mais e mais escorregadio e as árvores se fechavam cada vez mais, já tampando
quase completamente o sol que se preparava para dormir.
- Parece que estamos perto do
pântano de Minorwise – enfim falou Bala, rompendo o silêncio de várias horas
enquanto espantava umas moscas.
- Minorwise fica um pouco mais a
leste. Já esteve lá?
- Um homem pode conhecer todo o mundo
da própria soleira, meu bom Anton! Basta encontrar as fontes certas! – bradou o
halfling, triunfante.
- E o que foi que ouviu sobre o
lugar?
- Nada que me faça ter vontade de
conhecê-lo!
Anton resmungou alguma coisa e
seguiu silencioso.
- Afinal, Anton, quem é a pessoa que
você procura em Fianlall? – arriscou Balazanar.
O Cavaleiro estacou. Virou-se
furioso.
- Quantas vezes já lhe falei pra não
tocar nesse assunto? – ralhou Anton.
- Quando te conheci achei que a
viagem ia ser mais divertida! – respondeu Bala, bufando.
- Há sempre a opção de seguir
sozinho.
- Não, não, Anton, é caminho sem
volta! Você nos embrenhou tanto por essas trilhas ocultas que já estou perdido.
Não aguento mais a falta de conversa, Anton! Preciso de gente!
- Merda. Acho que suas súplicas lhe
trouxeram algo, pequeno!
E Balazanar viu que a floresta
lentamente se abria e que os últimos raios do sol mostravam mais à frente um
pequeno vilarejo. E acelerou o passo.
Anton sentiu um arrepio. A visão de
um vilarejo tão pequeno no cair da noite lhe trouxe lembranças.