sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Minha Liga Extraordinária - Parte 3 (Final)

Bom, com isso termina o que eu tinha escrito...

Alarian caminhava e caminhava, e seus pés não se cansavam.
                Já havia andado muito pelos campos ermos de Eradna até encontrar um barco e cruzar o Mar do Oeste. Difícil achar comerciantes por aqueles lados, vazios de civilização. Mas encontrou um velho coureiro, que viajara com o filho em busca de peles mais exóticas, e tomou condução. Foi difícil convencer os dois a levá-lo, homem bruto, híbrido, aparência selvagem. Mas os modos gentis – e o ouro – conseguiram amaciar seus ânimos.
                A pequena embarcação fedia a coisa morta. As peles frescas seguiam sem muito cuidado. Alarian contemplava o que um dia fora um cervo e maldisse sua sorte. Fechou os olhos e fez uma prece silenciosa. Ironia estar inevitavelmente cercado de morte, inalando-a sem escolha. Logo ele, pregador da Paz e da Vida, as mais sagradas das coisas.
                Desembarcou num portozinho no reino de Hienlore e seguiu rumando a norte, em direção à capital Fianlall. Deixara pai e amigos para trás para varrer o mundo espalhando sua sabedoria, curando doentes e evitando a morte e a profanação. Deixara para trás a desconfiança e a indiferença de quase todos à sua volta.
                A mãe de Alarian era Naria, humana de grande beleza e esposa de Faris, Alto Sacerdote do Templo de Fianlall. Lorde Faris fora enviado a Talaria, raro ponto de civilização na terra dos bárbaros, para conter a mortandade de homens no lugarejo, fruto da inacabável guerra com os monstros que reivindicavam aqueles campos.
                Faris em missão. Cidade desguarnecida. Orcs. Naria.
                A mulher em prantos. Sangue. Horror. Dor. Vergonha.
                Uma mácula se abateu sobre ela após o ataque. Ferida incontornável. A barriga inchava cada dia mais, uma monstruosidade, metade dela, nutrindo-se de seu corpo.
                Faris, sacerdote da Vida, a cabeça a mil. Teve alguns meses para escolher. E escolheu sua fé: aceitaria a criança como seu filho. E então nasceu Alarian, já trazendo ao mundo a morte: a da mãe. E herdando para si aqueles reluzentes olhos azuis.
                As pessoas respeitavam Alarian por sua estirpe e admiravam o Lorde pelo altruísmo. Mas poucos nutriam carinho sincero. Por isso Alarian partira, buscando um lugar no mundo em que não o julgassem tão prontamente. Além disso, precisava se apresentar ao Templo e adquirir a benção de seus superiores. Já era um sacerdote de conhecimento respeitável, mas tudo o que sabia fora aprendido do pai. Desejava agora se tornar conhecido do ordenado e engrossar as fileiras dos missionários.
                O sacerdote viajava seguindo as estradas tortuosas, desviando de montanhas e florestas, incomodado pelo grande número de viajantes, a maioria comerciantes, em fluxo contínuo. Certo dia foi dar em um lugarejo pequeno e simples, mas que inspirava riquezas passadas e, sobretudo, paz. Estranhamente a cidade era repleta de armeiros e o som das bigornas podia ser ouvido de longe. A cidade se espalhava plana e aglomerada, ao redor de um palácio antigo. Alarian ouviu dois comerciantes conversando e descobriu o nome do lugar: Norfolk.
                A estrada ladeava a cidade, contornando-a, mas muitos paravam nas lojas mais à borda, numa venda e compra incessante.
                Alarian resolveu entrar na cidade, impelido pelo cansaço e pela curiosidade. A maior parte das casas era feita de madeira e palha, como em Talaria, mas havia algumas mais opulentas erigidas com pedra e tijolos. O padre tentava entender a cidade, desacostumado que estava à aglomeração de pessoas, e queria ver o palácio. Ouvira falar de construções grandiosas, mas jamais havia visto uma.
                Ele andava, a cidade um misto de silêncio e comércio fervilhante. Quanto mais ele seguia para o centro do lugar, menos viajantes havia e mais estranho ele era. Janelas se fechavam e caminhos eram alterados para evitá-lo. Alarian engoliu a amargura, constatando que daquele lado do Mar do Oeste as coisas começavam a seguir da mesma maneira que em sua terra natal. Tentou ignorar os olhares oblíquos e foi andando para o Palácio.
                Súbito, correria. Um homem sujo e maltrapilho corria com um embrulho de pano na mão, na direção do meio-orc. Gritos de “ladrão, ladrão!” ecoavam ao longe. As pessoas se afastavam, assustadas. Três guardas vinham ao longe, tentando alcançar. O instinto fez com que Alarian se pusesse em perseguição ao larápio, disposto a ajudar o verdadeiro dono daquilo que parecia ser um presente.
                Cada passo do padre era quase dois do ladrão, que se desesperava ante a aproximação constante do perseguidor. Cascos de cavalo batiam contra o chão e se aproximavam. De repente, Alarian sentiu uma pancada brusca e poderosa nas costas e caiu pesado no chão, os cascos do cavalo parando a seu lado. Ele se levantou com dificuldade e o cavaleiro apeou ao seu lado. O mendigo sumia ao longe.
                Figura estranha, o cavaleiro. Armadura completa e espada bem trabalhada, ambas não conseguindo esconder décadas de uso. Uma postura imponente de quem cavalga e luta a duros fardos por toda uma vida, mas um pouco cansada de tanto batalhas. O rosto era repleto de rugas e possuía um bigode fino e um cavanhaque que lhe davam um ar aristocrático. Os olhos eram de um azul brilhante e contrastavam com a brancura dos cabelos, impecavelmente penteados para trás.
                - Muito bem, Tiberius! – bradou o homem coma uma voz rouca, seca e imperiosa, sorrindo e batendo no lombo da montaria de pelo marrom e crina aparada. – E você, criatura, devia se envergonhar por ousar roubar à sombra do Palácio do Duque! – falou, apontando para o rosto de Alarian enquanto este se levantava.
                O meio-orc contiuava sem entender o que se passava.
                - Vamos, devolva o presente de Sua Alteza!
                - Mas não sou eu o ladrão! – respondeu Alarian, inconformado.
                - Não tente enganar o Conde de Norfolk com palavras fáceis, moleque!
                Nessa altura uma pequena multidão havia se formado ao redor deles, assistindo em um silêncio tenso.
                - Mas não sou eu o ladrão, Conde! Eu estava em sua perseguição!
                Os dois pares de olhos azuis se confrontavam, quando:
                - O ladrão fugiu, Conde. Esse homem é inocente – sentenciou um guarda, que enfim chegara, esbaforido.

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                Alarian escolhera uma estalagem barata pra ficar. Ele possuía pouco dinheiro, já que havia recusado o dinheiro oferecido pelo pai e gasto boa parte de sua economia para cruzar o mar. O desjejum era frugal como ele mesmo: água fresca e um bocado de pão. As manzorras verdes o dilaceravam com facilidade e ele mastigava com facilidade com seus dentes duros e colossais. A despeito de tudo a manhã amanhecera doce e primaveril e os pássaros conseguiam impor sua melodia aos burburinhos humanos.
                O sacerdote comia com os outros hóspedes da estalagem em uma mesa comprida de madeira grossa e ancestral, situada em um salão amplo, nos fundos da estalagem, suscetível aos deliciosos odores matutinos da cozinha. Havia outros cinco hóspedes no recinto, que não mais encaravam Alarian como uma aberração. O engano do Conde havia-o transformado em uma figura conhecida. De fato, o Conde de Norfolk era mais que uma figura folclórica; era um símbolo da cidade, para alguns até mesmo um herói. Assim, qualquer erro de sua parte adquiriria ares mitológicos. Alarian, portanto, estava a salvo de zombarias e desprezo. Se o Conde duvidara de sua idoneidade e admitira estar errado, não haveria quem atentasse contra a boa alma.
                O dono do lugar – um velho baixinho e atarracado, careca e imberbe – colocava mais pão na mesa, quando sua atenção foi atraída para a velha porta, que rangeu dolorosamente ante a chegada de um visitante. O velho se assustou e deixou a vasilha de pão cair. Era o Conde.
                - Muito bom dia meu Lorde! A que devo a honra de visita tão ilustre e em tão boa hora? Aceitaria alguma coisa de nossa cozinha? – se adiantou o homenzinho, atropelando palavras e gestos em tom de surpresa.
                - Bom dia, amigo! Não se preocupe com hospitalidade, vim apenas visitar um velho conhecido! – disse o Conde, com sua voz rouca e imperiosa.
                - Mas certamente posso providenciar para que sua estadia aqui seja a melhor possível!
                - Dispenso seus cuidados, camarada! Descansar! – bradou o Conde e sua risada alta tomou conta do salão. E depois sua tosse.
                - Muito me agrada vê-lo novamente, senhor – falou Alarian, consciente de ser o motivo da visita.
                - Principalmente não sendo sob os cascos de Tiberius! – uma nova risada, correspondida pelo padre. – Devo lhe informar, caríssimo sacerdote, que venho novamente implorar para que perdoe meu mau julgamento – agora o tom sério.
                - E devo lhe informar, novamente, que lhe concedo meu perdão, campeão de Norfolk! – respondeu Alarian, sereno – Por vezes até mesmo os mais sábios estão sujeitos a enganos!
                - Enganos são toleráveis, mestre Alarian, mas não quando atentam contra a honra de um homem bom! Permita que eu lhe recompense!
                - Não há dinheiro que pague por um perdão já concedido.
                - Sei disso, amigo, e não ofereço dinheiro. Ofereço-lhe minha vida!
                - Que hei eu de fazer com sua vida, quando ela é tão mais necessária por essas terras? Vejo em seus olhos uma nobreza rara, Conde, e por isso peço que releve enganos passados.
                - Seguirei com você, mestre Alarian, irei escoltá-lo para qualquer que seja seu destino!
                Os demais ocupantes do salão olhavam surpresos ao velho prestando honrarias ao estrangeiro.
                - És homem de estirpe e de terras, Conde. Como irá caminhar ao lado de criatura tão frugal e
desprovida de posses como eu? – Alarian respondeu, levantando-se e indo de encontro ao velho.
                - Já conversei com o Duque e ele foi favorável, mestre Alarian! Fui liberado de meus serviços para segui-lo, da maneira como lhe for mais conveniente – explicou o Conde, olhando fundo nos olhos do sacerdote.
                - Pois então aceito de bom grado sua companhia até Fianlall, nobre cavaleiro! – assentiu Alarian, com sorriso quente como há muito não esboçava.
                - Será uma honra servi-lo, meu senhor!

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                Alarian não pagou pelo quarto da estalagem; o dono recusou terminantemente o dinheiro de um amigo do Conde. Em retribuição pela gentileza, Alarian abençoou o local e então tomou estrada.
                Das chaminés do Palácio saía uma fumaça amarela, sinal da partida de amigos da casa Merievan. O homenzarrão e o Conde andavam lentos e em silêncio, seguidos por uma procissão de pessoas que temporariamente se despediam do velho Conde. Alguns estavam festivos, como sempre se observa em grandes porções de pessoas, mas o tom geral era de tristeza. Assim Alarian sentiu o que tirava daquele lugar até que chegasse à capital. E decidiu que seria breve.

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Balazanar e Anton caminhavam juntos há alguns dias, para o prazer de um e lamento do outro. Tomavam sempre os caminhos mais escusos e andavam dobrado para poder evitar alguma trilha mais conhecida. Sua viagem, contudo, não se atrasava, já que o Cavaleiro impunha um ritmo alucinante, rigorosamente acatado e seguido sem reclamações por parte do pequenino. Anton se admirou, até, e passou a respeitar um pouco mais o halfling.
Há uma semana eles haviam partido do extremo sul do reino de Hienlore e a essa altura já deviam estar cavalgando na metade norte. Seguiam por uma trilha antiga, abraçada de todos os lados por uma floresta úmida de árvores não muito altas, mas com galhos finos e retorcidos despontando ao redor. Um cheiro de podridão pairava palpável no ar estagnado e as montarias estavam incomodadas. Peludo e o cavalo de Anton eram puxados pelas rédeas e a todo momento eram arranhados por um galho mais longo; não havia altura para cavaleiro e montaria por aqueles lados. A cada passo o chão ficava mais e mais escorregadio e as árvores se fechavam cada vez mais, já tampando quase completamente o sol que se preparava para dormir.
- Parece que estamos perto do pântano de Minorwise – enfim falou Bala, rompendo o silêncio de várias horas enquanto espantava umas moscas.
- Minorwise fica um pouco mais a leste. Já esteve lá?
- Um homem pode conhecer todo o mundo da própria soleira, meu bom Anton! Basta encontrar as fontes certas! – bradou o halfling, triunfante.
- E o que foi que ouviu sobre o lugar?
- Nada que me faça ter vontade de conhecê-lo!
Anton resmungou alguma coisa e seguiu silencioso.
- Afinal, Anton, quem é a pessoa que você procura em Fianlall? – arriscou Balazanar.
O Cavaleiro estacou. Virou-se furioso.
- Quantas vezes já lhe falei pra não tocar nesse assunto? – ralhou Anton.
- Quando te conheci achei que a viagem ia ser mais divertida! – respondeu Bala, bufando.
- Há sempre a opção de seguir sozinho.
- Não, não, Anton, é caminho sem volta! Você nos embrenhou tanto por essas trilhas ocultas que já estou perdido. Não aguento mais a falta de conversa, Anton! Preciso de gente!
- Merda. Acho que suas súplicas lhe trouxeram algo, pequeno!
E Balazanar viu que a floresta lentamente se abria e que os últimos raios do sol mostravam mais à frente um pequeno vilarejo. E acelerou o passo.

Anton sentiu um arrepio. A visão de um vilarejo tão pequeno no cair da noite lhe trouxe lembranças.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A Minha Liga Extraordinária - parte 2

Havia uma única alma vagando pela Estrada Velha naquela tarde. O céu estava bem azul, mas o sol brilhava fraco, num tempo agradável de outono. O mato já ameaçava voltar a crescer na estrada pouco movimentada, mas o solo duro e batido ainda oferecia alguma resistência. Havia poucos pássaros e as árvores tinham copas altas e longos troncos nus.  Balazanar caminhava, atento ao chão onde pisava e também à paisagem, de um lado floresta, de outro montanha.
                De longe parecia uma criança. Pouco mais de um metro, porte despreocupado. Mas de perto a barba – e só a barba! – traía a impressão. Balazanar tinha o rosto redondo, cabelos cacheados desgrenhados, castanhos como os olhos curiosos, e uma barbicha jovem descuidada. A barriga proeminente vez ou outra ameaçava arrebentar um botão do colete de couro. A calça era preta e havia nela pendurado toda uma profusão de pequenos bolsos, lares dos mais diversos objetos. Debaixo do colete havia uma camisa grossa e cinzenta, com um ar caseiro e quente. Andava descalço, os pés grandes e peludos, com a sola engrossada pelas estradas acidentadas. Usava um chapéu de abas largas que parecia ser grande demais pra ele. Na cintura, uma espada curta, com um curioso casco de tartaruga logo acima do punho, Nas costas, um alaúde. Era todo uma mistura de coisa rústica com detalhe, compondo um cenário cômico. Era um halfling da orla da Lagoa do Meio e não se viam muitos como ele por aqueles lados. Vinha sacolejando, montado em um pônei desatento e cansado.
                - Mas que beleza de lugar! Porque é que fica tão vazio? Não há nem sombra de gente por aqui! Ora, Peludo, estrada boa é estrada cheia! Viagem boa é viagem acompanhada! Com conversa e cachimbo! Por falar nisso vou fumar um pouco do tabaco do Boldo Botarroliça, meu velho!
                E seguia assim, em monólogos servilmente aturados pela montaria.
                A razão pela qual a Estrada Velha ficava tão deserta era a profusão de bandoleiros e monstros. O monte Hurak brotava solitário e repentino naquele canto de Saerarg e sua enorme quantidade de buracos e cavernas acabaram sendo abrigos ideais pra animais selvagens e todo tipo de gente vil. O mesmo tipo de gente que havia indicado aquele caminho a Balazanar. Em todo caso, era o caminho mais rápido, e o pequeno estava com pressa.
                Balazanar revirava uma bolsa pendurada em Peludo, procurando o cachimbo, quando o pônei empacou.
                - Êia, por que parou, seu coisa! – resmungou o jovem. Só então levantou a cabeça e viu três homens fechando-lhe o caminho. Feições nada amigáveis. Mas rostos conhecidos.
                - Mas que droga, sabia que tinha alguma coisa! Não se deve confiar em alguém que perde tão fácil num jogo de cartas! A propósito – girou a mão e fez surgir uma carta de baralho – isso deve ser seu! Ou não! – gargalhou e apeou de Peludo.
                - Essa sua espada vale dinheiro, baixinho. E esse alaúde também. Entregue eles junto com seu ouro e você segue viagem – falou o que parecia ser o líder. Todos eram homens altos e fortes, mas o que falava parecia ser o menos estúpido.
                - Ora, senhores! Eu bem sei que crianças não lutam! E não há mão de guerreiro que se encaixe nessa empunhadura! E meu alaúde, veja bem senhores, foi presente de meu pobre pai!
                - Não importa, baixinho, não enxe o saco e passa logo essas coisas!
Os outros dois homens avançaram, facas em punho e a morte nos olhos. Balazanar recuou alguns passos, trazendo o alaúde pra frente e preparando-se pra tocar,
                - Há algum problema que eu deva saber? – perguntou uma voz potente e imperiosa, vindo de trás, pelo caminho onde Balazanar viera. Todos pararam, em parte desconcertados pela presença, em parte impelidos pela voz altiva.
                Súbito um homem despontou da curva da estrada. Montava um cavalo marrom e seu porte era tão grandioso quanto à voz que o antecedera. Não vestia armadura, apenas uma blusa manchada cor de palha, com uma capa marrom e um capuz esvoaçando em suas costas. Na cintura, uma espada pesada e bem cuidada. O rosto tinha traços severos, a barba por fazer e o cabelo descuidado até os ombros conferindo uma fúria selvagem à aparência do homem. Os olhos eram escuros e penetrantes e transpareciam a autoridade adquirida com os fios grisalhos no cabelo preto. Uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, logo abaixo da bochecha e até o início do pescoço delatava uma vida enfrentando a morte.
                - Não, não há! – falou o bandido.
                - É apenas uma conversa entre amigos de carteado! – riu-se Balazanar – Divirta-se conosco!
                E começou a tocar de leve as cordas do alaúde.
                - Não se intrometa em assuntos dos outros! – berrou um dos homens armados, que até então estivera silencioso.
                - Espera aí! Você estava na taverna, não é mesmo? Lembro de ter visto a cicatriz sob o capuz! Que bom momento para encontrá-lo! Vem, vamos dançar um pouco! – disse o pequeno e começou a tocar com mais ânimo.
                Anton desceu do cavalo com agilidade e sacou a espada. Correu com passos rígidos de soldado na direção dos bandidos, duas mãos no cabo da espada.
                Os dois bandidos, até então parados, investiram contra o halfling. A primeira facada veio descendo e o jovem a evitou com um salto ágil para o lado. Veio junto uma estocada, agora evitada com dois pulinhos afetados para trás. Bem ao lado de Balazanar sibilou algo e ele pôde ver seu benfeitor evitando uma flecha. Num movimento rápido o pequeno sacou sua espada e se encolheu, protegendo-se e esperando pelos próximos movimentos dos inimigos. Uma nova estocada veio e bateu no casco de tartaruga, desviando-se do peito do jovem. O outro bandido ignorou Balazanar e investiu contra o homem do cavalo.
                Mau ele deu dois passos e a lâmina de Anton o encontrou, descendo impiedosa sobre seu ombro, rompendo carne e osso no caminho. Urrou de dor e se fez ouvir por todo o sopé do monte.
                Uma nova flecha foi disparada, dessa vez chocando-se contra a espada de Anton. O Cavaleiro investiu contra o arqueiro. Uma nova flecha foi armada, mas não ouve tempo: um corte baixo, pouco acima da cintura e o homem caiu inerte, reduzido a gemidos. Anton se virou a tempo de ver o último inimigo fugindo, sem resistência de Balazanar, disparando pro meio da floresta.
                - Você está bem? – perguntou Anton.
                - Sim sim! E não é que ainda existem heróis por esses lados! Eu temia tanto que isso não fosse verdade! Minha viagem não teria tanta graça, amigo! A propósito, qual o seu nome? Sou Balazanar Rosarubi, filho do velho Teo, de Bonestruca! Certamente já ouviu falar de Romeu, meu tio de Anarde! Viajemos juntos, quero ouvir histórias suas! Tenho aqui um excelente tabaco que comprei do Boldo Botarroliça e – e revirava novamente a bolsa em busca do cachimbo perdido.
                - Que bom que está bem. – interrompeu Anton – Quer dizer que cheguei a tempo. Ouvi você perguntando sobre o caminho e vi que a resposta escondia alguma intenção.
                - Ora, mas muito obrigado, bom homem! Achei o cachimbo! Vem, veja isso! É uma maravi –
                - Eu não fumo. Viajarei a seu lado até contornarmos o monte e sairmos dessa região erma. Depois eu sigo meu caminho.
                - E pra onde está indo, homem?
                - Procuro uma pessoa. Venha. Mas vamos em silêncio. Você pode tocar um pouco, se quiser.
                Balazanar olhou o companheiro, curioso. Por fim, se contentou:
                - Está certo!
                Montaram e seguiram.
                No final do dia já estavam além do monte. O Cavaleiro meneou a cabeça em despedida e cavalgou rápido, sumindo na estrada à frente. Balazanar resmungou, Peludo ouviu e assim seguiram mansos, até toparem com uma estalagem.

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                Todos, com exceção de Anton, gargalharam da história.
                - Então quer dizer que você já salvou a vida de Anton, Bala?  Quem diria que isso seria possível! – disse o Conde, entre risos e tosse.
                - Pois então, meu velho! Ele me salvou de uns rufiõezinhos de nada e não é que dias depois o destino me fez devolver o favor? Se eu não espanto aqueles lobos Anton nem estaria mais aqui! – bravateou Balazanar.
                - Você disse que os espantou com feitiços... achei que era um menestrel, pequeno amigo, e não um bruxo! – falou Alarian.
                - Ora, padre, de onde eu venho expulsar lobos é tarefa de criança!
                E a ladainha continuou. Quando o halfling se empolgava com algo não havia nada que o fizesse parar. Não que o barulho incomodasse Anton, absorto em seus silêncios interiores. E ademais era verdade: o pequeno o salvara. Ele havia resolvido dormir sem fogueira pra não atrair atenções e acabou sendo pego desprevenido pelos lobos. Mas, ainda assim, preferia viajar sozinho.
                - E depois disso ele deixou você seguir com ele? – o Conde.
                - Claro, claro! Não se nega o nome a quem se deve a vida, não é mesmo Anton? – brincou Balazanar, com uma piscadela.
                - Não grite tanto ou irá avisar a todos que estamos aqui, Balazanar! – ralhou Anton.

                - Êia homem arredio! Ainda arranco um sorriso dele! – brincou Bala e continuou gargalhando com os outros dois.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Minha Liga Extraordinária - Parte 1

Já comentei com você em mais de uma ocasião a minha vontade de escrever algo envolvendo algumas criações minhas: Balazanar ("senhores!"), Conde de Norfolk (repeat) e Alarian (aaahhhh). Junto deles tem Anton, um outro personagem, que nasceu antes de todos eles mas que nunca chegou a sair do papel.

Pois bem, de fato comecei a escrever um romance sobre esses quatro nas minhas primeiras semanas aqui em Houston, assim que cheguei aqui no ano passado. Tive que parar pra poder me dedicar a outras coisas. Esbarrei com isso hoje no meu computador e decidi compartilhar com vocês. Tenho umas 7 páginas de texto prontas e aí seguem as 2 primeiras... Talvez em um momento futuro eu poste mais!



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Havia gritos. Clemência, piedade, desespero, medo, dor. E palavras de comando, risos, brados de luta, armas se chocando.
                Havia calor. Piras imensas, armaduras pesadas, suor, batalha.
                Havia fedor. De animais fugindo, de gente viva, de gente queimada, de um jantar interrompido, de sono.
                Havia sabor. De boca seca, gosto de nada, gosto de tudo. O dissabor da perda. O intragável sabor de matar pela primeira vez. O toque amargo de ter a certeza da derrota. O sal das lágrimas.
                E havia caos.
                Chamas imensas serpenteavam tentando alcançar as poucas estrelas no céu. Os casebres eram devorados com uma voracidade cruel pelo fogo. Crianças choravam aos berros, protegidas por suas mães desesperadas e sem esperança. Os homens lutavam improvisados, enxadas e forcados contra espadas e escudos.
                Um jovem tomou uma estocada, as vísceras não oferecendo resistência à ponta afiada da espada. Um velho teve a mão decepada por um corte limpo e preciso. Um camponês arranhou a armadura de um Cavaleiro com uma machadinha, e então caiu por um corte fundo no peito. Uma barbárie, já que violência sem oposição à altura é massacre. Informações seguras indicavam que um velho inimigo da Ordem, sacerdote poderoso e profano, tomara a vila como morada e corrompera seus moradores. Os Cavaleiros, então, atacaram o lugar, em busca do vilão há dez anos desaparecido. Eram dez homens, contra pouco mais de cem. Os invasores cobravam, obrigavam, exigiam a presença do sacerdote. Mas os moradores do vilarejo estavam surdos de medo. E a cada palavra não ouvida uma vida se perdia.
                Inocentes morriam a cada minuto. Inocentes matavam, a cada minuto. Os Cavaleiros do Templo Errante, acostumados que eram a combater o Mal e a tirania, executavam com maestria o maior erro de sua nobre história. Criminosos e culpados de algo imperdoável, mas entre eles havia também vítimas.
                Anton viu um casarão, ainda sem fogo. Arrombou a porta em um chute e entrou, desbravando a escuridão. Súbito, algo se quebrou na sua cabeça. Ficou zonzo por um instante e sentiu unhas no seu pescoço.  Quem o atacava gritava de fúria incontida e agora golpeava o rosto do Cavaleiro. E Anton viu que era uma mulher. Uma mãe protegendo o filho, que chorava no fundo do vasto cômodo.
                - Não tem nada aqui pra vocês, não entendem? Levem o que quiserem, mas não nos matem! – gritava a mulher, enquanto ainda agredia o invasor.
                - Viemos purificá-los, senhora! Entregue-nos o sacerdote e partimos! – bradou Anton, esquivando-se e defendendo-se com o escudo.
                - Loucos! Assassinos! Não há sacerdote algum aqui!
                E a mulher caiu, um golpe de escudo acertando em cheio seu queixo. A criança não mais chorava, mas soluçava, paralisada de medo.
                - Não tem sacerdote nenhum, homem! Por favor não mate meu filho! – balbuciava a mulher, agora as lágrimas e o sangue jorrando. – Leve o que quiser, mas não mate meu filho! – e se agarrava às pernas do Cavaleiro.
                Anton olhou a criança e lembrou do próprio filho. Os dois deviam ter a mesma idade, mas certamente não a mesma vida.
                - Entregue-nos o sacerdote, senhora, e então –
                - Não há merda nenhuma de sacerdote! – a mulher agora esmurrava as pernas do Cavaleiro, golpes fracos, mas carregados de dor.
                - Há sim alguém profanando essas terras –
                - Não, não tem! Por favor, não nos mate – agora implorava, deitada aos pés do homem, sem forças.
                - Seu filho não pagará pelas suas mentiras! – bradou Anton. Afastou a mulher com os pés e saiu da casa.
                Olhou à sua volta. A maior parte dos homens da vila já não lutavam, mortos ou incapacitados. E os Cavaleiros prosseguiam incansáveis, ainda sem perdas. Havia poucos casebres ainda de pé. E ainda assim não encontravam o que foram ali buscar.
                Porque não existia.
                Os olhos de Anton se encheram de lágrimas, de percepção, de raiva e de vergonha, o sal de toda uma vida ameaçando jorrar. Olhou a noite iluminada pelas piras cruéis, vermelha de fogo e sangue. Olhou o casarão e viu um Cavaleiro entrando. Sequer pensou. Correu.
                Entrou pela casa em tempo de derrubar Andrev e evitar o golpe que arruinaria mãe e filho, agora unidos em um abraço.
                - Eles estão certos, Andrev, não há nada aqui! Fomos enganados! Nossa missão era uma mentira! – disse Anton, erguendo-se do chão.
                - Não caia nessa ladainha, Anton! – furioso – Juramos lealdade a nosso senhor e irei varrer o mal desta vila!
                - Não entende? Não há mal nenhum aqui! – Anton, se interpondo entre Andrev e a mulher, o pescoço pulsando, as mãos fortes no cabo da espada.
                - Saia da frente, Anton! Deixe que eu descubra o que viemos buscar! – e Andrev fez menção de avançar.
                - Não permitirei que os toque! Junte os homens e vamos partir daqui! Vamos ajudar na reconstrução das casas, Andrev, não há nada aqui! – disse Anton, algumas lágrimas de culpa escorrendo.
                - Traidor miserável! Não o mato agora por respeito a você!
                - Não! Não mata porque não consegue.
                Olhos crispados, mãos nos punhos das espadas. Tensão sólida.
                Súbito, mais dois Cavaleiros entraram na sala. Andrev baixou a arma e esboçou um meio sorriso.
                - A sua missão era uma mentira, Anton. Você foi enganado!

               
                Ж


                A fogueira agora ardia viva. Era uma noite agradável e estrelada, a lua brilhando cheia de vida no céu. Alarian colocava os últimos gravetos na chama que os manteria aquecidos pela noite. O jovem sacerdote era uma figura estranha. Era enorme, quase dois metros de altura, corpo forte e saudável. Usava sandálias surradas e simples e um manto bege encardido, grosseiro, sem detalhes. Tinha pouco cabelo, fiapos espaçados na cabeçorra. Duas presas saltando de baixo da boca, contraindo os lábios. A pele era de um tom verde profundo, rugosa, grossa, rígida, e as mãos eram colossais, e duras feito parede. Os olhos eram azuis, puros e incorruptíveis. E a voz era suave e relaxante.
                - Acho que deve bastar, meus amigos! Manterá-nos aquecidos e afastará os bichos! – falou Alarian, com um sorriso gentil.
                - Pois bem, Alarian, agora tome seu lugar que o jovenzinho ali nos deve uma história! – riu o Conde, sua voz grossa e rouca.
                - Cinco minutos, senhores, cinco minutos é tudo de que preciso! – respondeu Balazanar, sem tirar os olhos de uma flauta que havia comprado há alguns dias e que tentava tocar.
                E enquanto isso, sob o soar ainda desafinado do instrumento, Anton contemplava as chamas.
                E seu peito ardia.



domingo, 4 de agosto de 2013

Aritmia

Estavam lá, os dois sentados no píer deserto, espectadores solitários de um maravilhoso pôr do sol, barulhento e vermelho e laranja e roxo tal como só no litoral ele pode ser.

Ondas gentis quebravam perto deles, por vezes espirrando água na sola dos pés descalços. Incontáveis pássaros voavam perdidos no horizonte, as penas brancas quebrando a luz em um brilho ofuscante.

- Nada mal pra um primeiro encontro! - ela brincou.
- E quando teremos um segundo?
- Ah, então vai ter um segundo? - ele não percebeu, mas ela sorriu.
- Mas é claro! Sei bem que é preciso um terceiro antes de irmos pro quarto...

Riram. Era bom poder rir sem que ninguém ouvisse. Ao menos dessa vez a vida não seria o espetáculo repleto de testemunhas anônimas que é.

                - Me sinto bem com você - ele disse, assim, inseguro e sem sal.

Ela, calada, sorriu por dentro. Ele, de novo, não percebeu.

Por alguns instantes só ouviram o som da água e das aves. Mas não foi um momento desconfortável, já que não prestavam atenção no tempo. O sol se escondeu mais um centímetro e a cortina da noite começou a se abrir.

                - Eu também...
                - Você se sente bem com você?
                - Você entendeu, seu bobo! - e riram. As mãos se tocaram, entrecruzaram-se os dedos.
                - Mas... você acha que você já está pronto?

Silêncio novamente, as palpitações de cada peito mais audíveis que o mar.

                - Não sei... acho que sim... talvez...

Ela percebeu como era bonito o jeito com que a brisa bagunçava o cabelo dele e como ele tinha um brilho no olhar enquanto contemplava algum ponto distante no horizonte.

                - Não sei se estou, mas é o que eu quero! - concluiu e seu olhar se voltou pra ela. A pele tão fina e tão salpicada de vermelho pelo sol.

Os olhos e sorrisos dos dois se encontraram por um instante. Os olhos se desviaram, os sorrisos não.

                - Sei que ainda está bem recente, mas gosto tanto de passar meu tempo com você! - ele olhava pra ela. Ela sorria tímida, sem olhar de volta.
                - Eu acredito em você, mas é que tenho medo de me machucar... - ela falou, o sorriso murchando.
                - Mas não vou te machucar! - ele acariciou o cabelo dela. Suspiraram e ele a acolheu em um abraço.
                - Quero acreditar em você, - ela já acreditava - mas você não se sente estranho?
- Bom, sinto que posso dizer “eu te amo” infinitas vezes na vida e ser sincero em todas elas - e riu. Ela riu, com interrogação nos olhos, achando a piada inapropriada. - Até que eu encontre quem mereça minha última declaração...
                - Ah é? E quantos corações partidos você ainda vai deixar pelo caminho antes disso?
- Não sei. Mas sete sempre foi meu número favorito.

Riram, sem graça. Ela ainda um pouco desconfortável. Ele, idem.

Os corpos estavam agarrados, mas o pensamento vagou cada um para um lado por um instante. O sol se escondia ainda mais, seus raios brilhando forte, em ângulos cada vez mais escassos, na linha reta do fim do oceano. Os anseios ainda a perturbariam um sem número de vezes, mas ela tentava não acreditar nisso. Contava os dias para essa sensação ruim passar. Os pensamentos dele eram mais rasos. Resolvido, puxou-a para si.


Subtraída a vergonha, somaram-se os lábios, multiplicando as expectativas do quanto de suas vidas ainda iriam dividir.