sábado, 19 de maio de 2012

Feliz Aniversário


                Acostumara-se à pior das solidões: a das trincheiras. E, anos após embalsamar a farda, ainda mantinha esse velho hábito. Não havia outra mão que lhe espanasse a mesa, nem que lhe preparasse o chá. Era autossuficiente como o são o dia e a noite (se contados juntos), e tão compassado como as estações do ano. Cada golada da bebida quente parecia cronometrada de tão exata. Precisão espartana.
                Mantinha-se da pensão, que não era parca, mas também não permitia maiores extravagâncias. Não abria mão de seu bom chá e vez ou outra se permitia obter um tabaco bom para alimentar o cachimbo. A casa pequena era fácil de manter asseada e possuía um ar confortável e estático. Na pequena saleta era onde ele passava boa parte dos dias. Poltrona voltada pra parede, repleta de quadros e retratos, retratos dele mesmo ou de paisagens que ele nunca veria; uma mesinha baixa à esquerda e um cavalete montado ao lado da lareira, à direita.
                Quando jovem chegou a estar entre o pincel e a pistola, mas seguiu a marcha. Se fosse pintor, no fim das contas, seria mais por desejo que por talento. Do cavalete em sua sala saíam poucos rabiscos. Ele até que tentava criar algo, mas já o começo o desagradava e antes poupar o tempo dedicado à obra medíocre que insistir, assim pensava. Ora, a obra perfeita é a que não se pinta.
                Na mesinha, um tabuleiro de xadrez. Havia nele esboçada uma abertura espanhola, ainda à espera da derradeira mão a mover o peão dos pretos. Contemplava o tabuleiro, sem mover uma peça mais, revivendo batalhas inteiras dentro de sua cabeça. E nessas lembranças guerreiras iam-se boa parte de seus dias.
                No restante do tempo tentava ler os clássicos. Muitas vezes era derrotado por um tédio sem fim, quando algo dentro de si se revoltava e implorava por alguma ação. Dava então a caminhar pelas ruas, pensando que no mundo de verdade não há espaço para figuras de linguagem ou fantasias. E assim, contraditório, devaneava até o regresso.
Depois de exatos 56 anos não era Homem; era rascunho, de algo que poderia ter sido grandioso.

2 comentários:

Tenho que ler de novo depois, com calma, porque to no escritório. Mas algumas coisas eu devo dizer agora.

- a passagem: "a obra perfeita é a que não se pinta" me lembrou uma frase do Manoel de Barros: "As coisas mais bonitas são as que não existem".
- sua cabeça às vezes me dá medo, MT.

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