Estava frio e os poucos trapos não faziam barreira digna ao ventou gélido. As mãozinhas magras tremiam, tentando tirar calor do cerrar dos próprios punhos. A fome apertava enquanto caminhava em busca de comida; aumentava a despeito do cheiro podre. Não havia mais nojo. Havia a necessidade do corpo, e só.
O corpo solitário e subnutrido se arrastava pelo descampado, zumbizando em torno de sacolas frescas. A maioria delas, contudo, já estava apinhada de gente, seus irmãos, que o rechaçavam de lá. Viu logo à frente uma sacola, rasgada e revirada, sozinha. Andou descalço até lá e se agachou, juntas estralando. Revirou e revirou, mas lá não havia nada fresco que lhe melasse a mão. Papéis, apenas. Num deles, um coração desenhado.
Era bem moço ainda, mas já entendia ironia. Aquela com que a vida sempre se lhe apresentara. De que vale um coração a um estômago vazio? Mas algo, talvez a inocência que ainda habitava aquela criança, talvez a promessa de memórias ternas ou coisa outra qualquer fez com que tomasse a carta - pois era uma - para si.
Desembrulhou o papel com alguma avidez. Era daqueles com pautas claras, com as bordas cuidadosamente destacadas, mas em si sóbrio. Uma caligrafia ocupava toda a sua fronte, caprichada como quem toma cuidado ao falar. Mas não pareciam palavras muito pensadas; pareciam palavras que brotavam redondas e belas, mas que deveriam soar dessa mesma forma, com perfeição. Abriu mais uma carta e sentiu nas palavras a mesma tepidez e o mesmo cuidado. E havia uma data e não era muito distante da anterior. Abriu mais e mais folhas, todas elas com a mesma caligrafia, todas elas exalando o mesmo conforto de lembrança boa, todas com o mesmo sentido... será? Não sabia ler.
O estômago roncou, puxando-o de volta à realidade. Guardou bem escondido a sacola em um canto, para se um dia quisesse olhar tudo aquilo outra vez. E seguiu revirando o lixo, buscando comida ou, quem sabe, outro amor perdido.