Estava frio e os poucos trapos não faziam barreira digna ao ventou gélido. As mãozinhas magras tremiam, tentando tirar calor do cerrar dos próprios punhos. A fome apertava enquanto caminhava em busca de comida; aumentava a despeito do cheiro podre. Não havia mais nojo. Havia a necessidade do corpo, e só.
O corpo solitário e subnutrido se arrastava pelo descampado, zumbizando em torno de sacolas frescas. A maioria delas, contudo, já estava apinhada de gente, seus irmãos, que o rechaçavam de lá. Viu logo à frente uma sacola, rasgada e revirada, sozinha. Andou descalço até lá e se agachou, juntas estralando. Revirou e revirou, mas lá não havia nada fresco que lhe melasse a mão. Papéis, apenas. Num deles, um coração desenhado.
Era bem moço ainda, mas já entendia ironia. Aquela com que a vida sempre se lhe apresentara. De que vale um coração a um estômago vazio? Mas algo, talvez a inocência que ainda habitava aquela criança, talvez a promessa de memórias ternas ou coisa outra qualquer fez com que tomasse a carta - pois era uma - para si.
Desembrulhou o papel com alguma avidez. Era daqueles com pautas claras, com as bordas cuidadosamente destacadas, mas em si sóbrio. Uma caligrafia ocupava toda a sua fronte, caprichada como quem toma cuidado ao falar. Mas não pareciam palavras muito pensadas; pareciam palavras que brotavam redondas e belas, mas que deveriam soar dessa mesma forma, com perfeição. Abriu mais uma carta e sentiu nas palavras a mesma tepidez e o mesmo cuidado. E havia uma data e não era muito distante da anterior. Abriu mais e mais folhas, todas elas com a mesma caligrafia, todas elas exalando o mesmo conforto de lembrança boa, todas com o mesmo sentido... será? Não sabia ler.
O estômago roncou, puxando-o de volta à realidade. Guardou bem escondido a sacola em um canto, para se um dia quisesse olhar tudo aquilo outra vez. E seguiu revirando o lixo, buscando comida ou, quem sabe, outro amor perdido.
4 comentários:
Que lindo cara...! Doce e sofrido ao mesmo tempo... De onde vc tirou essas ideias?!
Absolutamente Genial e bem escrito (como de costume ;D)!
Devo eu lamber limão antes de ler essa boiolagem aqui? Tá danado...
Mentira! Ficou bonito. Deves escrever mais, rapaz.
Ficou excelente, apesar do tema me desagradar. Uma mera questão de identificação com a temática e de preferência de gênero textual. Não sou fã do moralismo e sentimentalismo reminiscente a Charles Dickens expresso em suas linhas. Você pegou pesado nesse lado, mas não deixou o texto piegas em momento algum. Você conseguiu construir uma abordagem suficientemente distanciada e moderada, sem extravagâncias e exageros de nenhuma parte. O resultado foi muito satisfatório! Teve sucesso em desdobrar uma perspectiva subjetivista de uma maneira que ficou quase profissional. Mas, como já disse, não curto Charles Dickes e não me sinto a vontade com as letras do Phil Collins. Esse moralismo comiserador me aleija emocionalmente, e repito, não há nada de errado nele, o problema está em mim. Esse gênero é apreciado por muitos e é mais do que consagrado.
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