segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Sobre como o Herdeiro tomou o Trono dos Mil Veios

Um trono vazio, um Ministro ambicioso, um jovem honrado e um punhado de homens de confiança. Isso é tudo o que é preciso para termos uma boa história!

Foi na época em que Imboir, o Enfermo, ainda era vivo. Se bem que vivo é uma expressão estranha para se referir a um homem que por anos a fio mal saía do Leito Real. Mas é mesmo fato, meus senhores, que ainda assim ele foi um dos homens mais nobres que esse mundo já viu.

Me parece que era outono em Fianllal, a belíssima capital do reino de Vanoria, cujas muralhas encerram o Palácio dos Mil Veios. As folhas carameladas rodopiavam no vento e caíam mansas sobre as águas onde se abraçavam todos os rios do continente. O Enfermo estava em seu último mês e já há dois anos não assinava um decreto. Quem mandava e desmandava naquelas terras era o então Conde Hieron de Montanard, nomeado Ministro Real e Orador Inquestionável pelo próprio Rei anos antes. Não sei se vocês sabem, já que talvez não tenham o prazer de viver pelas estradas como eu, mas essa gente de Vanoria tem o estranho hábito de suceder os Reis apenas após a morte. Sempre foi assim. E estive lá há dois ou três meses e ainda é assim. É por isso que o Conde podia governar no lugar do Enfermo, enquanto que o Príncipe Imboir II apenas acompanhava de longe o que se desenrolava no Palácio. Faltavam ousadia e tato militar no Ministro e eram aqueles tempos difíceis de conflitos com Saerarg pela planície de Manatoran. E quando os exércitos são de igual competência, irmãozinhos, o lado de pulso mais forte sempre vence. O Príncipe, é claro, não gostava nem um pouco dessa situação.

Então era isso o que tínhamos em Fianllal naquele tempo: um Rei inválido, um Regente frouxo e um Príncipe descontente.

Mas apesar de ser excessivamente cauteloso – ou covarde – o nobre de Montanard era mais venenoso que mil víboras. Ouve quem dissesse que ele ensaiava a morte do Príncipe e de seu irmão mais moço, para tentar tomar de vez o poder do reino. Mas era uma pena que seu veneno não pingasse sobre os vizinhos do leste, cada vez tomando mais terras que há séculos pertenciam à Terra da Eterna Cascata. E o jovem Imboir II, ainda com menos de vinte primaveras, se revoltava com os seguidos insucessos nas batalhas na fronteira.

O exército era liderado pelos grandiosos Cavaleiros do Templo da Fonte, que por sua vez haviam jurado fidelidade infinda ao Rei. O próprio Imboir II havia sido feito Cavaleiro, mais pelo próprio talento que pelo nome, e resolveu engrossar as fileiras de defesa. E por mais que o Príncipe dizia que estavam defendendo a parte errada da fronteira, que os inimigos investiriam mais ao norte, o exército permanecia, por ordens do Regente. Tudo isso fez com que o herdeiro do trono voltasse a Fianllal com um intuito grandioso: tornar-se Rei.

Como vocês, homens de vasto saber, já devem desconfiar, havia duas maneiras de fazer isso. Uma delas era matar o Ministro e tomar o poder, mesmo contra todos os protocolos ancestrais da Dinastia, tão velhos que devem se arrastar até a fundação dos reinos, ou quem sabe à própria criação do mundo, já que juram haver algo de divino neles. A outra era tomar a coroa do defunto do pai, algo que desafiaria até mesmo a sanidade de um homem honrado como o Príncipe. E, ao que corre pelos quatro ventos, ele escolheu a segunda opção.

Talvez o herdeiro se convencera de que matar um homem que tanto sofria seria uma dádiva, um enorme bem a uma boa alma. Além disso, não ousaria manchar todo o nome da família, rompendo com as velhas tradições. Decidiu que seu pai morreria como um homem bravo, com uma estocada no peito de uma espada de família. Pensando bem, ao matar o Regente ele ainda seria Príncipe até a morte do pai e, por algumas maquinações políticas, poderia ser julgado. Por outro lado, assassinando o pai ele automaticamente seria sagrado Rei – e estaria, portanto, acima da lei dos homens! Dificilmente outra pessoa no mundo faria essa escolha e - tanto pior! - encontraria argumento que a suportasse. Mas são justamente os grandes homens que fazem as coisas que nós não podemos entender. E é justamente isso que os torna lembrados para todo o sempre!

Imboir II soltou o broche de ouro na forma de gota e tirou a vistosa capa azul. Se fosse assassinar o Rei deveria deixar de ser Cavaleiro. Cavalgou de volta à capital, trazendo consigo seis homens de confiança. Não Cavaleiros, obedientes ao Rei por sina e fé, mas soldados. Homens sem tantos títulos, mas com a mesma honra, lealdade e bravura. Por mais que a viagem tenha sido feito sob os auspícios da noite, o porte de nobre e o trote altivo do cavalo do Príncipe devem ter acusado sua jornada e os arautos do Conde chegaram a Fianllal antes do jovem. De fato, a figura do Príncipe inspirava confiança. O corpo forte e de ombros largos parecia não se incomodar com o peso da armadura metálica, que deixava apenas a cabeça à mostra. O rosto era bem desenhado, com traços retos e certeiros. O cabelo era longo, descia até os ombros, castanhos e livres, como o crepúsculo. Mantinha a barba bem aparada, para que, em sua feição, apenas os olhos negros e incisivos chamassem a atenção.

O Conde era esperto. Ao saber que o herdeiro rumava à capital, por mais arriscado que uma viagem fosse a um homem doente, mandou o Rei, sob forte escolta, ao Solar de Veraneio, perto de Longfor. Além disso, havia certamente sido o responsável por alguns ataques de supostos bandoleiros sobre os nobres viajantes, que os custara a vida de um companheiro e algumas cicatrizes fundas.

E então o príncipe se viu frente a frente com seu inimigo, o Conde Hieron, no Palácio que deveria lhe pertencer.

“Não encontrou o que veio buscar?”, deve ter dito a víbora, com os olhos azuis brilhando e um sorriso escancarado. A careca do velho era como um vale entre os morros de cabelos brancos e o corpo era magro e esguio.

Pelo que dizem de Imboir II ele deve ter dado as costas e saído do palácio. Era – e é, com toda a certeza! – extremamente prático e não se dava ao luxo de ter conversas retóricas em meio ao combate. E partiu, rumo a Longfor, com os companheiros exaustos, mas não sem antes tomar cavalos descansados nos estábulos reais.

A viagem foi rápida, pois os cavalos eram velozes e os cavaleiros animavam-se ante a expectativa da batalha. Chegaram ao velho Solar na tarde seguinte, abarrotado de guardas dispostos a matar o herdeiro para proteger o Rei. Ordens do regente. Não havia muito o que fazer. Eles eram apenas seis, contra talvez uma centena de homens descansados e bem equipados. Imboir II não insistiu para entrar. Girou sobre os calcanhares e foi embora. E voltaria, quase duas semanas depois, com um pequeno exército.

E, naquele outono, os campos castanhos do Solar foram encharcados e ficaram ainda mais vermelhos. Quase duas centenas de homens se enfrentaram e a maior parte deles não saiu vivo das muralhas. No meio da batalha, Imboir II deve ter conseguido abrir caminho até a porta da mansão e adentrado na casa. Certamente derrubou mais alguns guardas até adentrar nos aposentos do pai. E lá estava ele. O rosto calmo, os olhos cerrados, completamente alheio à luta que filho travara. O velho sacerdote que cuidava de sua saúde o olhava desamparado. O Rei já estava morto.

Ninguém sabe como Imboir II conseguiu uma tropa em tão pouco tempo. Suspeito que ele tenha seduzido jovens escudeiros do Templo a ajudá-lo, sob o pretenso manto de estar servindo ao Rei – e de fato estavam, já que o antigo governante se encontrava agora morto. Aposto que havia um sem número de mercenários por lá também. Seja como for, o plano funcionara melhor que o planejado e o Príncipe não precisou banhar a espada com seu próprio sangue – ao menos é o que dizem, é claro!

Imboir II, agora Rei, deve ter sentado ao lado do pai, dado-lhe um beijo e chorado pela perda. Chorado pela vida que havia se disposto a tirar. E talvez chorado pelo medo de estar sozinho, um reino nas mãos e uma guerra a vencer.

Ninguém nunca mais viu o Conde. Alguns dizem que o novo Rei o executou. Outros dizem que ele fugiu, para tentar preparar um golpe que lhe traria novamente o poder. Em todo caso, lá se vão algumas décadas desde esses acontecimentos e Imboir II permanece firme no posto de soberano de tão abençoado povo.

Mas o destino não faz distinção dentre os homens, e tanto nobres quanto peões acabam sempre encontrando surpresas no caminho, não é garoto? E o destino arrumou um jeito curioso de lembrar Imboir II do que ele havia intentado fazer. Diz-se que com o passar dos anos ele ficou com a exata aparência do pai, antes dos tempos de doença. Parece que não há um espelho sequer dentro do Palácio e todos os apetrechos de prata foram trocados por vidro e cristal para que o novo Rei não visse o pai em seu próprio rosto. Que punição seria pior, em um lugar de águas tão cristalinas? Por isso, aqueles que conheceram os dois Reis lhe cunharam um novo nome: entraria para a história como Imboir, o Filho. E, pelos Deuses, seria com esse nome o maior Rei de Vanoria!

Ouvi dizer que o Rei Imboir, o Filho, já consultou um sem número de sábios sparziatas em busca do segredo da vida eterna, pois não quer deixar a coroa na mão de um fraco. Parece que ele não pode ter filhos e seu irmão e parentes próximos são afogados em vícios, indignos de homens de cargo tão honrado. Mas isso não sei se é história ou se é mesmo verdade. Ouvi de um cego que me acompanhou de Fianlall a Norfolk. E sabem o que dizem dos cegos por lá? Que já que eles nunca viram coisa errada, então devem estar sempre certos! Se isso também é besteira não sei, mas as quatro dúzias de palavras que ele soltou nos três dias de viagem faziam sentido pra mim!

Mal pronunciara as últimas palavras e a multidão urrou de êxtase. Meneltar, o menestrel de Bonaluna, sorria cortês e fazia mesuras desmedidas de agradecimento. Nada lhe aquecia mais a alma que o reconhecimento por seus dons. Passeou os olhos pela platéia: mercadores viajantes, soldados, homens maltrapilhos e até mesmo um burguês gritavam honrarias ao trovador. Algumas crianças que antes brincavam em volta da taverna também haviam entrado para ouvir o bardo. Agora Meneltar apenas se regozijava com a explosão de vozes que dera lugar ao silêncio absoluto. E como era bom saber que era possível manter fechadas as bocas de tanta gente durante seu monólogo!

Quando a algazarra começava a diminuir, um homem enorme se ergueu, de frente ao balcão, e gritou:

- Meu ouro! Roubaram meu ouro! – e uma confusão se formou.

O fato é que após o grito do homenzarrão, muitos levaram as mãos instintivamente às algibeiras, apenas para sentirem-lhes mais leves. Uma nova gritaria e Meneltar, de alma leve e dever cumprido, já recolocara o chapéu sobre a longa cabeleira e saía pela porta.

Caminhou algumas centenas de metros e encontrou o velho amigo Gnoa escorado na parede de um casebre, divertindo-se com uma moeda, do jeito aluado e atento que só ele sabia encenar. Meneltar sorriu e Gnoa lhe deu um forte abraço.

- Bela história Menel! Bela história!

E rumaram a uma estalagem, tentando conter o tilintar do metal a cada passo que davam.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Projeto 800 mil anos – O Livro do Fim do Mundo

Ouvi falar esses dias desse projeto, "O Livro do Fim do Mundo".

A ideia é escrever uma história sobre uma pessoa que fica sabendo que em uma hora o mundo acabará e o que ela faz nesse tempo. O conto pode ter até 20.000 caracteres (mas usei nem 5...). Os criadores do projeto irão escolher as melhores e elas poderão até mesmo ser publicadas em um livro.

E o nome do projeto "800 mil anos" tem uma coisa bem legal por trás:
"O Livro do Fim do Mundo é o último capítulo da sua vida e de outros 7 bilhões de pessoas que vivem no Planeta Terra. E se cada uma delas contasse a história de sua última hora precisaríamos de aproximadamente 800 mil anos para ouvi-las."

Enfim, achei a ideia legal e um excelente exercício de escrita. Espero poder ver contos de vocês por lá!

O conto que eu escrevi está sob avaliação e não sei em quanto tempo vai estar disponível. Então lá vai:
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O Velho, o Começo e o Fim

Dessa vez era diferente. Não sabia como nem por que, mas estava certo de que era diferente. O fim do mundo se aproximava. Mais uma vez. E talvez pela segunda ou terceira naquela semana. Só que agora o final não ousaria se atrasar novamente.

Esses pressentimentos, quase certezas, iam e vinham já há décadas. Mas o mundo sempre passava a perna nele e respirava por mais algum tempo. Mas agora não tinha mais saída, ele sabia. E tinha tão pouco tempo! Menos de uma hora! Sempre pressentia o momento do fim, mas nunca conseguia prever o modo como tudo acabaria. Uma bomba, talvez; quem sabe um asteróide imprevisto; tampouco ousava descartar aquele dragão que arrastaria o céu com a cauda.

Tudo começou quando ele ainda era moço, naquela idade em que qualquer detalhe frouxo pode ser alvo de uma curiosidade infinita. E foi bem ali, mexendo nas antiguidades que a avó insistia em guardar que teve o primeiro vislumbre. Uma fraqueza indizível se abateu sobre seu corpo e ele desabou. Estava mudo de desespero e não conteve as lágrimas rápidas. E ali ficou prostrado por coisa de um quarto de hora.

E o mundo, sabemos, não acabou. Mas isso pareceu não importar.

A consciência do fim fatalmente leva à dúvida quanto ao princípio e o jovem passou a se perguntar sobre as coisas do Universo. Muito pensou e estudou. Por fim, decidiu que a existência é cíclica e que a todo fim imediatamente se sucede um reinício. Mas se afinal tudo é um ciclo, pensava, não há princípio, meio e final exatos, uma vez que qualquer ponto pode ser os três ou nenhum com a mesma probabilidade. Mas percebeu uma implicação fantástica: se por acaso observasse com cuidado o fim, sua última visão deveria ser exatamente o começo. E os pressentimentos voltaram mais vezes, mas agora a agonia incontida dera lugar à excitação e à ansiedade.

Mas os homens adoram ir contra a lógica. Imagine que o mundo acabe. Saber que o mundo beira o fim não mudará nada – um instante depois tudo é pó, é nada e talvez uma semente de um tudo futuro. Assim, qualquer aviso a qualquer pessoa é nada mais que inútil. Mas de alguma maneira aqueles pressentimentos vinham com uma certa dose de culpa. E ele resolveu contar que o mundo acabaria e quando isso iria acontecer.

Comoção, desespero, indiferença e esperança foi o que ele causou nas pessoas que passavam pela avenida enquanto ele anunciava o fim. E depois de novo. E de novo. E mais. Foi quando a família resolveu interná-lo.

Agora tudo se repetia, mas – e não sabia como – sentia uma coisa diferente. Agora ele estava certo. Como tantas vezes fizera, subiu em uma cadeira, no centro do pátio e inflou o peito, com ar solene. E mais uma vez se pronunciou sobre o fim dos tempos. E mais uma vez foi ignorado.

A verdade é que pouco dos internados davam atenção ao velho. Cada um estava preocupado demais com as questões de seus próprios e indescritíveis universos. Os enfermeiros acompanhavam todo aquele teatro atentamente. Alguns até se divertiam pensando em quantos apocalipses aqueles cabelos brancos já haviam previsto.

Mas o velho já não se incomodava já há muito com a descrença dos outros. Sentia-se com o dever cumprido. E então sentou e aguardou pelo fim.

Como tantas vezes fizera.